" Há algumas flores do amor que abrem só depois de longa intimidade." Osho

Beijo da Escrita


Eu escrevo como quem beija.
Um beijo longo, demorado, carinhoso.
Um beijo desses de língua.
A língua se movimenta lentamente
e me permite um gosto
ao mesmo tempo do outro
e de mim mesma.

Do outro que me encontra
neste texto
e do que há em mim que permite o encontro.


Eu escrevo como quem vive.
Assim, simples,
fazendo um texto de vida,
na vida.
Às vezes, penso,
afinal, que texto é esse que eu produzo?
Que vida é essa agenciada
pelo sabor das palavras compartilhadas,
sussurradas, como um afago?


Quem é esse outro que me encontra
e quem sou esse eu mesma que se expressa,
que se entrega...
nesse delicioso beijo de língua?
Nesse movimento que, afinal,
eu mesma provoco?
O gosto vem do meu movimento mesmo
associado ao movimento do outro.


Quando escrevo, eu me inscrevo.
Fica também o meu gosto
no gosto da língua do outro.
E isso me remete a não querer parar de escrever.Nunca.





quarta-feira, 21 de abril de 2010

A taça

A taça
Da jarra da minha existência, despeja-se a água que enche as taças de meus dias. O mineral líquido é sorvido naquelas que eu mesma escolho. Apesar da pureza da água independer da qualidade da taça, esta influencia sobremaneira no sabor daquela.
Embora o sol teimasse em brilhar, acordei com a sensação de água barrenta na boca. O gosto-cheiro-de-terra-molhada instalou-se em minha língua. Preencheu minhas rodovias internas. Desde o bom-dia até sonhe-com-os-anjos. Tudo tinha aquele gosto. Não é de minha natureza escamotear as sensações que vivencio. Entretanto, tentava disfarçar a água-barrenta que me invadia. Talvez por saber instintivamente que ela estivesse dentro de mim. É difícil aceitar a própria lama.
Decidi, influenciada por meu estado, mexer nos vasos. Comprar a terra boa. Forrei a mesa com jornal. Comecei o processo depurativo. Gosto desse tipo de tarefa. Artesanal. Esqueci dos compromissos e passei a dedicar-me às folhagens. Com cuidado, tirei a planta do primeiro vaso. Coloquei-o na mesa. Retirei a terra que a pouco a envolvia. Percebi a secura. Do corte no plástico, o aroma orgânico invadiu o ambiente. Feito café passado.
Depositei no vaso a nova terra. Ao pegá-la, notei a sua fofura. A sensação de mexê-la, fazer cuidadosamente o buraco para abrigar as raízes, trouxe-me um sentimento de alívio. Processo óbvio. Entretanto, meus pensamentos foram iluminados pela certeza de que aquela terra havia passado por um apodrecimento natural e inevitável.
Para tornar a terra fértil, cava-se um buraco; deposita-se nele o material orgânico. Esse é coberto por uma camada de terra. Com o tempo, o lixo orgânico apodrece. Em suas entranhas, a Mãe Terra o decompõe para dali algum tempo devolver-lhe a vida. A complexidade da equação ocorre fora do alcance dos olhos curiosos. No ventre da Mãe Terra. Naquele lugar assustador. Povoado pela escuridão. Nesse receptáculo de morte, engendra-se a vida.
Esta informação pareceu-me esclarecedora. O gosto de lama deveria fazer parte de meu processo de decomposição. Deparar-me, com os medos, com as carências, com a incapacidade, com os motes, com as raivas, com os sentimentos mesquinhos, assusta. No entanto, ao depositá-los em meu território sagrado depuro o meu ser.
Entro em contato com a aridez de meus temores. Com a enorme ausência de vida. Lambuzo-me com a podridão dos meus desejos. Nesse contato direto, sem preservativos, encontro os resquícios do monstro ferido, acuado. Aquele que me faz reagir por meios ilícitos. E, ele sangra o fel da rejeição. Expõe a ferida. Urra por regeneração. De seus gemidos, compreendo a ansiedade que assola a alma. Seus espasmos ecoam como soluços, impossível conter a avalanche de emoções que esse contato detona. A água percorre meu corpo. Jorra das vísceras desse animal ferido. Currado em seus princípios. Fico ali. Paralisada. Vejo em seu semblante os traços contorcidos de minhas emoções. Cristalizadas. Petrificadas. Exibe com ferocidade meus inconfessáveis complexos, medos, quereres, desejos ínfimos. Numa torrente avassaladora, reconheço-me em seu sentir. Percebe minha aceitabilidade. À luz da recepção, responde com um facho dourado de energia. Das lágrimas resulta o suspiro. E, dele o riso de interação. O monstro se foi. Restauro meu animal sagrado. Desse confronto, veio à força de minha sombra. A consciência da construção obsoleta e defensiva de estruturas contra a vida. Os padrões pelos quais me pautei. As verdades em que acreditei, os medos que me paralisaram, a enorme carência de amor mascarada. Assumo e devolvo-lhe o estratificado em mim. Descobrir o monstro requer integridade interior. O barro dessa taça mistura-se à água. Para aqueles que se perdem nesse combate, a taça deturpa o sabor da água.
Aflora a minha consciência as verdades-externas que absorvi; os delírios sociais que comunguei; os medos e doenças que internalizei. Nada era meu. Fui depósito de crenças. Valores que aprendi e não são meus. Tudo isso foi jogado na minha essência. E, ela, auxiliada pelo meu animal sagrado, tece a fertilidade de minha terra.
Levou tempo. Muitos eclipses ocorreram. Entretanto, por detrás e por baixo desse mundo diário, sob a luz do dia – que me fizeram acreditar ser o único real, existi um outro mundo profundo e denso, cheio de riquezas ocultas e mistérios – que contém meus potenciais a serem desenvolvidos. É nesse lugar macio e primitivo de meu ser que minha essência elabora a transformação. Nele não há relógio digital. Apenas existe a solicitude.
Nesse estado interno, existe o mapa invisível de meu caminho. Tal qual a planta depositada na terra boa. O alimento que absorvo vem desse mundo subterrâneo. Em sua escuridão, aprendo a olhar com os olhos da fé para minha alma. Em sua densidade, despejo os detritos de meus contatos com o mundo. Deixo nela o vírus inimigo. Para que lá seja exorcizado. Quanto mais constritos, mais sofrimentos. Na entrega, reside à sabedoria. Deixar-se moer dá ao grão de trigo a sublime tarefa de alimentar. Viver exige mais do que um moinho para esmigalhar nosso grão. Sentir o Amor, percebê-lo em seu peito, deixa-lo agir, permitir-se ser a taça por onde ele se derrama é a experiência mais enriquecedora. Compreender isso e que Ele (Amor) se instala em nós. E, Ele e não nossa razão que atua, escolhe, faz. A entrega da razão nesse momento significada a humildade em reconhecer que a minha razão não sabe, e reverencia conscientemente essa energia que tudo pode; tudo sabe; tudo vê. Sou o grão de areia e o mar da energia amorosa me penetra limpando, lavando minhas tristezas, meus julgamentos, meus temores até estar pronta para experenciar além de mim, transcender.
Ao colocar a planta no oitavo e último vaso, retorno serena de meus pensamentos. Aterriso transformada nessa realidade externa. Desbloqueei os canais. As folhagens são o único sinal de que viajei para meu interno. Exibem faceiras o gosto de terra nova a abrigar-lhes. A água que se derrama sobre elas desce límpida por entre a terra. Minha taça transborda a água vivificadora da alma. Sinto a energia do Amor agindo movimentando-se em cada átomo do meu ser. Limpa meus pensamentos, aprofunda meu sentir, aprendo nessa energia a acolher e nutrir o melhor em mim e no outro. Meu olhar agora se fixa, potencializa o positivo em mim e no outro. Vejo não mais com meus olhos externos, mas sim com os olhos internos assentados no Amor. Desta forma, nada em mim e no outro é para machucar. Toda a dor é apenas para mostrar a rudeza que precisa ser lapidada em nós. Mostra-nos a espessura da armadura que precisa ser derretida. Através da entrega, aprendo a confiar na energia que sinto.
Desse lugar de onde venho, resta-me uma pergunta: quantos vasos serão precisos experenciar para que o humano em nós possa reencontrar sua fertilidade amorosamente divina?

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